"Está circulando a notícia de que opapa João Paulo II, falecido em 2005, tinha uma amiga íntima com a qual se correspondia com freqüência e com a qual se encontrava com certa constância. A correspondência de Karol Wojtyla com essa mulher, cujo nome é Wanda Poltawska, teria durado 55 anos', escreve José Lisboa Moreira de Oliveira, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, e gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília, em artigo que nos foi enviado e que publicamos a seguir. O autor foi assessor nacional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.
Eis o artigo
Wojtyla a chamava de “Dusia”, isto é, “irmãzinha”. Segundo a notícia publicada no sítio do Instituto Humanitas da Unisinos - IHU -, citando outras fontes como o jornal italiano La Stampa, são cartas “extremamente pessoais” que eram trocadas com “inflexível regularidade” pelo correio ou através de amigos comuns. O volume é tão grande que daria para “encher uma mala”. Segundo a descrição das fontes da notícia, as cartas são “envolventes” e o tom de confiança definido como “embaraçoso”. Dizem ainda que Wanda, “estretíssima amiga” do pontífice, criava embaraços e maus-humores na Cúria Romana com seus comportamentos de grande proximidade com o papa. Chegava a ir de pantufas à missa na Capela privada do pontífice. Quando o papa esteve internado num hospital de Roma, após o atentado, ela não teve receio de aparecer nas janelas do apartamento onde se encontrava o papa convalescente. Os dois costumavam irem juntos a passeios pelas montanhas, atividade que tanto fascinava Wojtyla. Era comum Wanda ir passar o verão em Castel Gandolfo, a residência estiva dos papas, nas proximidades de Roma. De acordo com as notícias divulgadas esse relacionamento em tons afectuosos entre um papa e uma leiga estaria sendo motivo de objeção, de dificuldade, de desaceleração do processo de canonização de Wojtyla. Acredito que a ala conservadora e fundamentalista da Igreja deva estar decepcionada e irritada com a circulação dessa notícia. De facto, ela vinha fazendo um esforço enorme para canonizar esse papa, tido como paradigma da Igreja que ela quer que prevaleça daqui por diante. A notícia caiu como uma bomba e foi um duche frio para as pretensões dessa gente. Mas o que dizer sobre isso? Antes de tudo é preciso dizer que a opção pelo celibato não significa castração de toda e qualquer forma de relacionamento com as pessoas. O celibato não exclui a relação de amizade, não exclui a intimidade, não exclui o amor. A relação afetiva pode estar presente na vida de uma pessoa celibatária, sem que isso signifique comportamentos típicos da vida de um casal. Infelizmente a nossa cabeça está poluída pela mentalidade pornográfica e não conseguimos ver a possibilidade de um encontro íntimo entre duas pessoas, sem que esse encontro chegue a genitalidade. A maioria das pessoas – incluindo nessa maioria, padres, frades e freiras – está afectada pela erotização da relação. Por essa razão reduz o encontro entre duas pessoas ao acto genital. Não conseguem pensar a intimidade de outra forma.
Estudos feitos por pesquisadores sérios, como, por exemplo, Rovira, Gentile, Rinser e Müller, provaram que grandes santos celibatários cultivaram amizades profundas com outras pessoas, sem com isso violar o compromisso do celibato. São conhecidos alguns exemplos dessa amizade: São Francisco com Santa Clara, São Francisco de Sales com Santa Joana de Chantal, a grande Teresa d’Ávila com João da Cruz. Aliás, dizem que Teresa d’Ávila, a santa do “só Deus basta”, tinha um grupo seleto de amigos íntimos com os quais trocava correspondências íntimas. Chegava, inclusive, a usar pseudônimos para evitar a ingerência dos bisbilhoteiros da vida alheia. Viajava sozinha com João da Cruz para visitar os Carmelos. Li certa vez em algum lugar que quando as más línguas começaram a coçar, João da Cruz partilhou a sua preocupação com Teresa. Essa não ligou muito. E em tom de brincadeira teria dito: “Quem sabe, para não escandalizarmos, a partir de agora, ao invés de andar cada um num cavalo, vamos os dois juntos num só cavalo”. Francisco de Sales, num escrito íntimo a Joana de Chantal, teria afirmado que quando pensava nela durante a celebração da missa entrava em êxtase. Conheço ainda hoje muitos presbíteros, muitas mulheres e homens de vida consagrada que cultivam amizades profundas, numa intimidade singular, sem, por isso, violarem o compromisso do voto de castidade e do celibato. É claro que essa experiência exige uma maturidade maior, uma clareza precisa da vocação cristã e da vocação específica. Mas não é impossível. Por isso essas pessoas celibatárias são, a meu ver, as mais comprometidas e extremamente doadas à causa do próximo, particularmente dos pobres e excluídos. Porque amam e são amadas de verdade, podem amar sem medo e sem rodeios. Estou convencido de que a relação de João Paulo II com Wanda entra nessa categoria.
O papa, como tantos santos e santas, soube amar uma mulher concreta e de modo concreto, sem com isso quebrar o seu compromisso de homem celibatário. Em segundo lugar é preciso dizer que esse episódio, mais uma vez, confirma a urgência de se rever a lei do celibato obrigatório. O celibato é um dom do Espírito, destinado apenas a algumas pessoas. Alguém pode ser chamado por Deus a viver celibatariamente tanto por um período de tempo, como por toda vida. Disso não existem dúvidas (cf. 1Cor 7,25-40). Porém, ligar obrigatoriamente o recebimento de um ministério ordenado ao celibato é um absurdo teológico que está pondo sérios obstáculos ao chamado divino. O próprio Criador colocou, no DNA do ser humano, a tendência natural para o encontro entre o macho e a fêmea. Não somos imagem e semelhança divinas isoladamente, mas no encontro do masculino com o feminino (Gn 1,27). O próprio Deus reconheceu que o homem não poderia ficar sozinho. Por isso lhe deu uma companheira (Gn 2,18-24). Portanto, ao negar pelo celibato obrigatório essa possibilidade, a hierarquia da Igreja se coloca frontalmente contra um dos princípios mais fundamentais da antropologia bíblica. O facto de que João Paulo II, durante 55 anos, não quisesse “ficar sozinho” e buscasse uma “companheira” com a qual partilhar sua vida, inclusivé a sua vida afetiva, deveria convencer a hierarquia da Igreja a abolir para sempre o absurdo do celibato obrigatório. Estou convencido de que ainda hoje, como durante os primeiros doze séculos do cristianismo, muitos homens são chamados ao mesmo tempo por Deus ao ministério presbiteral e ao matrimônio. A Igreja Católica Romana, com a sua teimosia, está impedindo a realização desse chamado divino. Não se deve insistir na ordenação de padres casados apenas em razão da escassez de presbíteros. Deve-se insistir também, e muito mais, por uma razão teológica, por uma razão vocacional. Não há impedimentos teológicos para a ordenação de homens ca-sados. O que existe é uma disciplina, nascida num contexto maniqueísta de desprezo pelo sexo, pela sexualidade e pelo matrimônio. Hoje se procura justificar por todos os meios essa obrigatoriedade. Mas pesquisas sérias, como aquelas realizadas por Edward Schillebeeckx, conseguem provar que a razão principal da proibição do casamento para os padres foi uma visão altamente negativa do sexo. Começou-se proibindo aos padres de ter relação sexual com a esposa na noite anterior à celebração eucarística. E quando os padres foram obrigados a celebrar missa todos os dias, passou-se à imposição do celibato e à sua conseqüente vinculação com o ministério presbiteral. Por fim, o episódio serve como emblema para denunciar uma prática reinante em certos setores da hierarquia católica romana. Segundo a notícia publicada no sítio do IHU, o cardeal Stanislao Dziwisz, actual arcebispo de Cracóvia e durante 40 anos assessor direto de Wojtyla, acusa Wanda de querer “se tornar importante”, relatando o seu relacionamento com o papa. Para o purpurado a correspondência pessoal do papa “não deveria ser publicada e colocada diante dos olhos de todos”. Concordo plenamente com o direito à privacidade, mas, a meu ver, na fala do cardeal se esconde uma prática bastante comum entre muitos da hierarquia. O sujeito pode fazer tudo, desde que isso permaneça oculto. Pode até violar seus compromissos, como aquele do voto do celibato, mas desde que isso permaneça “por baixo dos panos”. Não estou afirmando que o cardeal concorde com esse tipo de prática. Mas, talvez sem querer, ele terminou por expressá-la. É preciso acabar com essa hipocrisia que tolera e encoberta certos comportamentos, desde que eles não se tornem públicos. É preciso cultivar a transparência e a verdade que liberta. Não acredito que Wanda, hoje no final da vida, esteja atrás de notoriedade. Certamente ela quis relevar ao mundo que foi possível, santo, normal e bonito o amor entre um celibatário famoso e uma mulher. João Paulo II deveria ser canonizado exatamente por isso: por ter cultivado algo tão natural. De facto, a santidade é viver segundo o projeto de Deus, que não quis que o homem ficasse sozinho, mas tivesse uma companheira para lhe ajudar. Amar não é pecado, porque Deus é amor. Quem ama permanece em Deus. Pecado é não amar. Quem não ama ainda não fez experiência de Deus (1Jo 4,7-21). João Paulo II foi personalidade pública, figura marcante na Igreja e no cenário mundial. O que aconteceu com ele serve de referência para muita gente. Que a hierarquia da Igreja Católica aprenda com a experiência de amor de João Paulo II. Que ela passe a ser formada por pessoas que amam de verdade. E que amando alguém concretamente os membros da hierarquia sejam menos rigoro-sos com os outros, menos hipócritas e mais transparentes. Wanda está de parabéns por ter tornado público a sua relação com o pontífice. “Não há temor no amor; mas o perfeito amor lança fora o temor, pois o temor implica castigo; e o que teme não é perfeito no amor” (1Jo 4,18). O cardeal Stanislao Dziwisz defende o papa em sua entrevista, afirmando que ele tinha um modo natural de se relacionar com todas as pessoas. Costumava quebrar protocolos e cultivar hábitos, como aquele de, em público, beijar mulheres no rosto. Portanto, a meu ver, não há nada a temer com essa notícia. Pelo contrário, devemos nos alegrar com ela, pois, se for verdade, tivemos um papa que foi, sob esse ponto de vista, humano e santo. Pena que se queira esconder algo tão natural. Vamos esperar que, mais uma vez, não prevaleçam as máscaras da hipocrisia e da falsidade. “Conhecereis a verdade e a verdade fará de vós homens livres” (Jo 8,32). Por que permanecer escravo da mentira e da ambigüidade? Se João Paulo II amou de verdade uma mulher e permaneceu fiel ao seu compromisso de homem celibatário, por que não colocar isso como referencial para os celibatários e celibatárias de hoje? Não seria isso uma expressão fantástica de santidade? Estou convencido de que o papa amou sendo fiel, mas, se por acaso ficasse provado que ele violou seu voto, isso também deveria ser dito, pois “aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8,34). E um escravo do pecado não pode ser referencial para os outros. Um papa que defendeu tanto o celibato obrigatório, não poderia ser canonizado se ficasse provado que não cumpriu fielmente esse compromisso. Seria consagrar exactamente o contrário da santidade. Eu pessoalmente estou convencido de que Wojtyla, nesse ponto, foi íntegro. O seu amor por uma mulher foi, ao mesmo tempo, plenamente humano e profundamente fiel. De facto, como afirma Gialdi, “não se pode viver por si mesmo, sozinho. Precisa-se de alguém que compreenda e acolha os segredos do coração e os mistérios da alma”. Agora é esperar para ver, se os burocratas eclesiásticos da Cúria Romana mais uma vez não impuserem o famoso “silêncio sagrado” (Cozzens).
Nenhum comentário:
Postar um comentário